“As virtudes dionisíacas”, por Roger Caillois (Acéphale 3-4)

As virtudes dionisíacas
Roger Caillois

(trecho da Acéphale n.3-4: Dionisos)

Parece que na medida precisa em que o espírito se impõe uma rígida disciplina e leis ao menos muito severas, ele deve levar em conta equivalente as embriaguezes e se perturbar com a própria existência destas, pois ele jamais está certo de não provar sua tentação ou seu remorso. Ele pode, no privado, exercer um constante domínio de si e conservar sempre o mais exato controle de suas antecipações instintivas ou, em público, restringir à formulação de evidências o exercício de suas faculdades, não propagar senão o exprimível e o definido, só avançar sobre terreno completamente conquistado, assimilado, e nada propor que não se possa justificar e que não seja parte inalienável de um sistema. A potência que essa austeridade confere ao espírito que a adota é de direito propriamente sem medida. Esse espírito obtém, de fato, por meio dela, tamanha coesão que se torna inexpugnável à maneira de um exército em que cada elemento tático em cada ponto se beneficiaria da força indivisa da totalidade dos efetivos. Nem por isso deixa de sentir a constante solicitação das embriaguezes. Melhor ainda, um espírito tão coeso é para elas uma presa ainda mais indefesa, sendo daquelas que se arrebata na totalidade. É que ele é unificado demais para se dividir e entregar apenas a parte do fogo no momento da vertigem: é inconcebível que ele não permaneça tão inteiro no espasmo quanto no cálculo. Igualmente disposto a um e rompido ao outro, é como se nele a detonação fosse tão explosiva justamente por se seguir a uma tensão severa demais.

A embriaguez de resto se manifesta como estado total, estendendo-se, virtualmente ao menos, sobre todo o teclado das atividades do ser, pois que todas consentem e se calam no momento em que a embriaguez exaspera apenas uma. Juntando a semiembriaguez da lucidez superior, de que fala Baudelaire, com aquelas que Nietzsche distingue, ou seja, as três embriaguezes das bebidas fortes, do amor e da crueldade, percebe-se facilmente que não há ponto em que o êxtase não possa tomar apoio, sem que no entanto a extrema sensação de potência que o caracteriza cesse de permanecer idêntica a si mesma. Quaisquer que sejam seus efeitos íntimos, seja lá que valor se lhes atribua, é certo que eles transportam os indivíduos e (salvo, num certo sentido, alguns tóxicos paralisantes que lhes provocam ademais também um sentimento de intensa e calma superioridade, ainda que de ordem contemplativa) lhes comunicam uma impressão de máximo de ser que lhes faz preferir ao resto de suas vidas esses raros instantes que logo lhes urge renovar.

Assim, além de interessarem o indivíduo no mais imprescritível de si mesmo, as diversas embriaguezes parecem constituir naturalmente, para ele, um estado violento face à sociedade e talvez testemunhar certa dificuldade da parte dele em se adaptar à vida coletiva. Eis aí pois, ainda, e talvez não seja a menor, uma oposição entre as embriaguezes e a inteligência: o destino imperialista desta e a desdenhosa resignação daquelas em se exaltar à parte e para si mesmas.

No entanto, a história dá a pensar que essa oposição não comporta nenhum caráter absoluto: é na medida em que a sociedade não sabe atribuir a devida parte às forças dionisíacas, desconfia delas e as persegue em vez de as integrar, que o ser se encontra reduzido a tomar apesar da sociedade as satisfações que deveria só dela receber. O valor essencial do dionisismo residia, de fato, neste ponto preciso: ele unia socializando, por meio daquilo que, mais do que qualquer outra coisa, separa quando seu gozo é individual. Melhor, ele fazia da participação no êxtase e da apreensão em comum do sagrado o cimento único da coletividade que fundava, pois, em oposição aos cultos locais fechados das cidades, os mistérios de Dionisos eram abertos e universais. Eles colocavam, assim, no centro do organismo social as turbulências soberanas que, decompostas, serão a seguir acuadas pela sociedade aos terrenos vagos da periferia de sua estrutura para onde ela rejeita tudo o que tem chance de desagregá-la. Esse movimento representa nada menos do que a mais profunda das revoluções e não é indiferente que o dionisismo tenha coincidido com o levante dos elementos rurais contra o patriciado urbano, e que a difusão dos cultos infernais às expensas da religião uraniana tenha sido acarretada pela vitória das camadas populares sobre as aristocracias tradicionais. Ao mesmo tempo, os valores mudam de signo; os polos do sagrado, o ignóbil e o santo, permutam. O que estava à margem com o tão interessante descrédito ligado a essa expressão, se torna constitutivo da ordem e de certa forma nodal: o associal (o que parecia tal) une as energias coletivas, as cristaliza, as subleva — e se mostra força de supersocialização.

Basta essa constatação para poder usar do termo virtudes dionisíacas, entendendo por virtude o que liga, por vício, o que dissolve. Pois basta que uma coletividade tenha podido encontrar nelas sua base afetiva e fundar a solidariedade de seus membros apenas sobre elas, à exclusão de toda pré-determinação local, histórica, racial ou lingüística, para assegurar, naqueles que as solicitam, a convicção de que elas são injustamente reprimidas numa sociedade que quer ignorá-las e que não sabe reduzi-las, para lhes dar o gosto e lhes mostrar a possibilidade de se agrupar em formação orgânica inassimilável e irredutível, para firmar enfim sua resolução de recorrer a essa estratégia sempre disponível.

Acéphale n.3-4 (Dionisos)

acephale3Acéphale n.3-4 [Dionisos]
(Publicado originalmente em julho de 1937)

Autores: Georges Bataille, Pierre Klossowski, André Masson, Roger Caillois, Jules Monnerot
Tradução de Fernando Scheibe

36 pgs, 2013, impressão à cera e costura manual

Preço: R$30,00 [frete incluso]

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Número duplo, como o original, contendo: “Dionisos” [“O deus Dionisos”, “Nietzsche Dionisos”]; “Dionisos filósofo” (Jules Monnerot); “Crônica nietzschiana” (Georges Bataille); “As virtudes dionisíacas” (Roger Caillois); “Declaração relativa à fundação de um ‘Colégio de Sociologia’”; “Dom Juan segundo Kierkegaard” (Pierre Klossowski); e quatro desenhos de André Masson (“Dionisos”, “A Grécia trágica”, “O ‘universo dionisíaco’” e “O touro de ‘Numância’”).

“O que nós empreendemos é uma guerra” – lê-se no primeiro número da Acéphale, revista (paradoxalmente) encabeçada por Georges Bataille entre 1936 e 1939. Dedicados especialmente, mas não só, a uma leitura de Nietzsche contra o seu uso pelo fascismo, os 4 volumes (compreendendo 5 números) da publicação estão sendo publicados pela Cultura e Barbárie, em tradução de Fernando Scheibe.

 

Totem, de André Vallias

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Totem
André Vallias

Álbum com 40 impressões coloridas (cera térmica) em formato A4 (Papel Color Plus 180g), com caixa/capa em serigrafia. Introdução trilíngue (português, inglês e guarani-kaiowá) de Eduardo Viveiros de Castro.

O poema de André Vallias, considerado por muitos o (contra-)hino de nossos tempos, foi escrito a partir de 222 nomes de povos indígenas. Compostas numa tipologia criada pelo autor, as 26 estrofes do poema tem como imagem de fundo o Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú. Acompanha o álbum mapa e gráficos com dados dos povos indígenas no Brasil.

Preço: R$80,00 [frete incluso]

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Multimídia

Ontologia do acidente, de Catherine Malabou [Novo título]

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Ontologia do acidente:
ensaio sobre a plasticidade destrutiva
Catherine Malabou

Tradução de Fernando Scheibe | Coleção anima | 72 pgs
14 x 20 | Impressão em cera sólida; costura e acabamento manuais

[ A edição original em francês foi publicada pela Léo Scheer, de Paris (2009) ]

Preço: R$35,00 [frete incluso]

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Em consequência de graves traumatismos, às vezes por um nada, a história do sujeito se bifurca e um personagem novo, sem precedente, coabita com o antigo. Um personagem irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado, cujo futuro não tem porvir. Um monstro cuja aparição nenhuma anomalia genética permite explicar. Uma improvisação existencial. Dessa impossibilidade do retorno da identidade ferida a si mesma surge uma forma, nascida do acidente, nascida por acidente. O que é essa forma? Um rosto? Uma atitude? Um perfil psicológico? E que ontologia pode dar conta dela se a ontologia está desde sempre presa ao essencial e permanece cega à álea das transformações? Que história do ser pode explicar o poder plástico da destruição, da tendência explosiva da existência que ameaça secretamente cada um de nós? Prosseguindo sua reflexão sobre os choques psíquicos e cerebrais, Catherine Malabou nos convida a uma aventura filosófica e literária, em que Spinoza, Deleuze e Freud cruzam com Proust, Duras e Thomas Mann.


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Da mesma autora

Sobre a autora

Sur, de Veronica Stigger

SurA edição argentina de Sur, de Veronica Stigger, está à venda em nosso site. Com tradução ao castelhano de Gonzalo Aguilar, o livro traz “2035”, “Mancha” e “El corazón de los hombres”.

Quarta capa: “Veronica Stigger figura entre las escritoras más inspiradoras de este comienzo de siglo. Esto se debe, creo, a una gran sensibilidad que la hace capaz de leer el presente y encararlo narrativamente tal como él se presenta. Y se trata, precisamente, del modo de presentación, porque Veronica parece haber comprendido que el mundo contemporáneo, sus subjetividades y sus relaciones ya no pueden ser representados, pero sí presentados. De ahí la virulencia de sus textos que oscilan entre el humor y la infancia, la perversión y la risa. La autora se desliza en las redes del espetáculo y atraviesa cuestiones contemporáneas de máxima urgencia, al mismo tiempo que vacía los sentidos del mundo mostrando que ya no podemos partir exclusivamente de lo simbólico o de lo imaginario – de un lado el realismo, nuevo realismo o hiper-realismo, y del outro, el fantástico o el absurdo. Su literatura sería, antes, un índice de lo real. Por medio de una connotación trágica y cómica, Veronica intensifica la relación entre la literatura y la muerte. Tal vez así podamos comenzar a elaborar respuestas para permanecer vivos. Nuestros modos, nuestras modas, deberán ser repensados y analizados a la luz de la complejidad contemporánea para los cuales la ficción de Stigger parece imprescindible.” (Flávia Cera)

 

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Sopro 99

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Roussel, la vie, por Raul Antelo: texto apresentado no lançamento da tradução brasileira de Locus Solus.

A eterna traição dos brancos, por Antonin Artaud: “Por sua vez, essa concepção de moral da natureza e da vida – segundo a qual o homem sente em si mesmo sua própria vida como distinta da Natureza – corresponde a uma ideia dualista das coisas. E sempre vimos nascer o humanismo nas épocas que separaram o espírito da matéria e a consciência da vida. Tal concepção é europeia.”

Leitura de “A primavera de Rimbaud: poesia latina”

Leonardo D’Avila lerá trechos de “A primavera de Rimbaud: poesia latina” na Boston University, dia 25 de março. O livro será lançado em breve pela Cultura e Barbárie.

Abaixo seguem a descrição do evento e o programa completo (em inglês):

“The New Barbarians: Brazilian Cultural Criticism After the End of Modernity” on Mar. 25 from 3-7pm (CAS 200, 725 Commonwealth Ave., Boston University).

We will receive several scholars, most from Brazil, pertaining to a new wave of cultural critics, at Boston University to discuss contemporary themes of Brazilian culture, especially: post-dictatorial voids, vagabondage and revolution, ideology and aesthetics, anachronism and fragmentation of culture, art and bananas, travel and nation, headless bodies, literature and anti-academicism, contemporary historiography of slavery, and the myth of Brazil as a paradise. And also some are going to be making special connections to Cuba.

Please, do find attached the poster for the conference with its full program. All the talks will be in English but for the literary reading of Arthur Rimbaud’s Latin Poems translated into Portuguese.

poster

 

Fragmento de história futura e Raul Pompéia: O Ateneu e o romance psicológico em formato ebook

Mais dois títulos nossos estão agora disponíveis em formato ebook (epub e mobi): Fragmento de história futura, de Gabriel Tarde, e Raul Pompéia: O Ateneu e o romance psicológico, de Araripe Jr.

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